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Da Sardenha à Sicília

Volta Pela Europa em 126 dias - Parte V
Ao fundo, o porto de Cagliari
                                          
Difícil conseguir, com palavras, descrever a cena em toda a sua intensidade, estranheza e mesmo beleza. Cheguei para o embarque a poucos minutos da partida, marcada para as 19h. Depois de instalar-me na cabine, com mais três pessoas, desci para assistir a partida da nave.
Enquanto esperava, olhava o pôr-do-sol, subia e descia dos vários andares para observar a vista por todos os ângulos possíveis. Vi uma pequena barca, daquelas que fazem o reboque dos navios pelos canais do porto aproximar-se de um dos lados. Duas ou três pessoas, marinheiros suponho, observavam, conversavam entre eles e o barco retornava ao cais.
Depois de repetir-se várias vezes essa mesma cena, me dei conta de que estávamos atrasados, a nave já deveria ter partido. Numa dessas idas e vindas, o barquinho trouxe também um rapaz com um capacete e equipamentos de solda.  Então, olhei bem para baixo de novo, compreendi tudo e levei um susto: o que eles estavam observando era um "rombo" no casco do navio e iriam fazer o reparo ali mesmo. Nada de estaleiro, equipes, segurança.
Vários passageiros, como eu, debruçavam-se no parapeito a olhar para baixo. Saltavam faíscas para todos os lados, choviam reclamações, xingamentos em dialetos sardo e siciliano. Eu, obviamente, não entendendo nada, mas deduzia que seriam piadas, logo rebatidas com desaforos. Tudo aos gritos, que ecoavam no silêncio do cais. Eu podia me sentir propriamente na Itália.
Pior, pareceu-me que rasgavam pedaços de papelão e enfiavam no furo, para fazer vedação. Passavam por cima uma espécie de cola, com um pano molhado, sei lá tinta, cuspe, esparadrapo, band-aid. E eu teria que viajar naquilo. Uma vez embarcada não tinha mais jeito, não iria passar pelo fiasco de descer, pagar mais uma diária de hotel e terminar num avião. Ainda teria que dormir ali durante toda a noite.
O "reparo" levou bem umas duas horas. Afinal a nave terminou saindo e todos se retiraram para suas cabines. Ouvi comentários de que essa cena é bastante comum e que ate hoje "nunca aconteceu nada". Ufa! Caí dormindo e esqueci completamente do “furo”. 
                  






Companheiras de cabine: Stella, Marcela, Sara e eu

                                   Depois de uma "solda" improvisada no casco,
                          a nave chegando na Sicília
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Enquanto estava pendurada na amurada do convés, trocava comentários com outros passageiros e um siciliano puxou assunto. Aprendi ali o efeito que as palavras mágicas “viajando sozinha” e “brasileira” provocam nos italianos.  Os olhos brilham. E, não importa como tenha começado qualquer conversa, a segunda pergunta será sempre: “é casada”? A depender da resposta, eles sentem-se mais à vontade para, hum, por assim dizer, “marcar território”.
Italianos fazem bem para o ego. No sul da Itália, especialmente, jamais percebi que minha idade tivesse qualquer importância, eu era apenas uma mulher e estava sozinha. Ouvi muitos murmúrios de “bella dona” enquanto passava incólume com meu indefectível chapéu de turista. Posso dizer que fui assediada frequentemente e, para alguns, tive que deixar claro que eu não buscava ali esse tipo de aventura.
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A propósito, transcrevo trechos da Danusa Leão sobre os homens italianos, no livro Fazendo as Malas, que arrefeceram um pouco do meu entusiasmo e me trouxeram de volta à verdadeira dimensão dos galanteios:


“Os italianos continuam os mesmos: dizem galanteios, se jogam aos pés, cantam, prometem amor eterno, casamento e felicidade. É que eles vivem uma vida duríssima com as italianas, que os tratam no chicote – é a terra da mamma -, e, quando vêem uma estrangeira, ficam loucos. Os homens romanos, lindos, são, veramente, um caso à parte. Românticos até quando mentem – ou não mentem, porque acreditam no eterno amor que juram naquele momento. E todos amam de paixão, mas no dia seguinte não sabem se suas amadas da véspera estão vivas ou mortas. 


“Se você está comendo sozinha numa trattoria e passa um homem, ele abre um sorriso e te diz buon giorno. E não é paquera, porque ele continua seu caminho, dizendo buon giorno a todas as mulheres; é uma maneira de viver, faz parte. E, quando estão parados numa esquina e passa uma mulher, os homens fazem cara de grandes conquistadores e dizem ‘Belíssima’. Também para nada, só pela alegria de viver.”
                  foto by:
               Marcello Mastroianni, para mim eterno (e belo)
               protótipo do galã italiano                              
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Um comentário:

  1. Muito bom. A narrativa dessas passagens tão pitorescas, levam o leitor , por breves instantes, a sentir-se em viagem, apreciando novas paisagens, aromas e costumes.
    Qual vai ser a próxima viagem?
    Alexandre

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